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19
Sex., Abr.

apresentação no Faial

 

Boa noite a todos e obrigado à Dra. Carla Cook pela sua excelente apresentação que bastante me lisonjeia. Quero salientar que é uma honra estar aqui naquela que já foi a Insula de Ventura e Ilha de São Luís de França.

A ChrónicAçores retrata os meus amores ilhéus. Além da literatura dos Açores, viaja de Bragança à Austrália, e aos meus amores por São Miguel, Santa Maria, São Jorge, Faial e Pico.

Aliás a inquietude persegue-me desde que deixei a Europa em 1973 e me abri ao conhecimento universal e multicultural. Adquiri uma errância mais própria de nómadas ciganos do que das origens sedentárias de marrano galaico-português. Esta inconstância assola-me ainda mais desde que me arquipelizei nos Açores há mais de seis anos. Sou conhecido pela infidelidade no amor às ilha que habito. De cada vez que saio da Ilha verde - e visito ou conheço nova ilha – enamoro-me loucamente como um jovem adolescente de sangue quente em busca de paixões avassaladoras como são os amores da juventude. Só posso viver numa mas em todas quero estar em simultâneo, pois nelas me sinto em casa.

Quando aqui cheguei desconhecia quase tudo sobre as ilhas, mas descobri no Dicionário do Morais os termos “chamados” açorianos. A língua recuada até às origens e adulterada pelo emigrês que trouxe corruptelas aportuguesadas e anglicismos. Trata-se de desvendar o arquipélago como alegoria recuando à sua infância, sem perder de vista que as ilhas reais já se desfraldaram ao enguiço do presente e não podem ser só perpetuadas nas suas memórias. Nesta geografia idílica não busquei a essência do ser açoriano. Existirá, decerto, em miríade de variações, cada uma vincadamente segregada da outra. Também não cuidei de saber se o homem se adaptou às ilhas ou se estas condicionam a presença humana, para assim evidenciar a sua açorianidade. Limitei-me a observar e a analisar o que me rodeia e depois passo ao papel essas crónicas do mundo que me envolve. Aliás, estou convencido de que uma das razões para haver aqui tantos escritores se deve exatamente ao facto de vivermos nestas ilhas. É essencial partir à descoberta de cada ilha, sonhando com Dias de Melo nas agruras e na fome dos baleeiros, reler o Mau Tempo no Canal, parar num qualquer aeroporto e entender o Passageiro em Trânsito do Cristóvão de Aguiar, ler em voz alta a poesia do Fogo Oculto de Vasco Pereira da Costa, Viajar com as Sombras ou com o Tango nos Pátios do Sul de Eduardo Bettencourt Pinto, depois de revisitar as pedras arruinadas do Pastor das Casas Mortas ou a Grande Ilha Fechada de Daniel de Sá. Escolhi estes que melhor conheço mas há muitos outros autores açorianos que não só merecem ser lidos, como deveriam constar obrigatoriamente de qualquer currículo regional. Cito do livro:

A ilha para Natália Correia é Mãe-Ilha, para Cristóvão de Aguiar, Marilha, para Daniel de Sá, Ilha-Mãe, para Vasco Pereira da Costa, Ilha Menina, para mim nem mãe, nem madrasta, nem Marília nem menina, mas Ilha-Filha, que nunca enteada. Para amar sem tocar, ver dilatar nas dores da adolescência que são sempre partos difíceis. Toda a vida fui ilhéu. Perdi sotaques mas não malbaratei as ilhas-filhas. Trago-as comigo a reboque, colar multifacetado de vivências de mundos e culturas distantes. Primeiro em Portugal, ilhota perdida da Europa durante o Estado Novo, depois em um capítulo naufragado da História Trágico-marítima nas ilhas de Timor e de Bali, seguido da ínsula de Macau (fechada da China pelas Portas do Cerco), da imensa ilha-continente Austrália, e na ilhoa esquecida de Bragança no nordeste transmontano, antes de arribar a esta Atlântida Açores. Tudo começou a modificar-se quando traduzi Daniel de Sá e Victor Rui Dores entre outros. Acabei cativo e apaixonado. Tive de escrever para me libertar da poção mágica do arquipélago e daí nasceu “ChrónicAçores: uma circum-navegação”. Foram meus guias,

Dias de Melo que era um operário, agricultor, pescador, escultor que trabalhava, ceifava, pescava e esculpia a palavra como um baleeiro, pescador, marinheiro, mestre de lancha da ilha do Pico. Escreveu como se da janela da sua “Cabana do Pai Tomás” no Alto da Rocha na Calheta de Nesquim, vigiasse os botes e as lanchas da Calheta, baleando contra os Vilas e os Ribeiras

Cristóvão de Aguiar que psicanalisou as gentes e a terra que o viram nascer mas adotou o Pico como nova ilha mátria em 1996. Para ele a escrita nunca será catarse, título do seu mais recente livro, pois é fruto de amores incompreendidos entre si e a sua ilha...Como diz (Relação de Bordo II pp. 199-200) Primeiro foi a ilha, nunca mais a encontramos como a havíamos deixado...trouxemos somente a imagem dela ou então foi outra Ilha que connosco carregámos...

Vasco Pereira da Costa que é um apaixonado e representa a universalidade da açorianidade nos seus contos e poemas, sem jamais descurar o telurismo na sua escrita, sendo sarcástico e crítico do falso cosmopolitismo insular quer na crítica à mentalidade medíocre quer no provincianismo balofo que critica na multiplicidade da sua obra que vai desde o conto e a novela, até à memória e à “crónica” breve, passando pela Poesia.

Se bem que a minha pátria seja a Austrália eu conjugo-a com a de Fernando Pessoa, a língua portuguesa. Se hoje tenho como mátria Bragança, aos açorianos o devo, pois foram eles quem me ensinou a ter amor às verdadeiras raízes onde quer que se viva. Ao vê-los tão amantes das suas terras tive de descobrir as minhas origens em Bragança onde vivi menos tempo do que em qualquer outro lugar. Sinto como todos transportam esse sentimento de pertença aqui e no estrangeiro.

Num mundo marcadamente materialista como este, decidi que a minha herança para os filhos seria esta riqueza dos conhecimentos que colecionei ao longo da minha circum-navegação e que agora condensei em livro. Aprendi mais nos países onde vivi do que qualquer universidade me poderia ensinar. Com os aborígenes australianos entendi como é possível preservar a língua e cultura mesmo sem haver escrita há 60 mil anos. Com os chineses apreciei o valor do futuro com base nos ensinamentos do passado, e com os timorenses, macaenses e outros aprendi saberes que fazem parte do meu quotidiano. É disso que este livro fala. Aqui, nesta ilha tudo me fascina desde o surrealismo dos Capelinhos a fazer esquecer a tragédia humana que lhe está associada até a essa visão paralisante do Pico. O mágico cume tem um íman que atrai a visão humana e nos desconcentra, sempre a pedir para o contemplarmos nas suas mil e uma facetas alteradas a cada segundo.

Tivesse eu fôlego e iria ao mítico Pico da Atlântida submersa, cujo magnetismo me fascina ao ponto de desejar, vezes sem conta, mudar de armas e bagagens para este Triângulo Sagrado onde prometo fazer imolações e outros sacrifícios nas aras do destino. Não sendo das Bermudas este triângulo isósceles, que nunca escaleno obsceno, seria ótimo pousio final para as minhas cinzas quando chegar a estação de fazer como as cobras e trocar de pele. Despir a bela capa colorida terrena, de seis decénios, e vestir o cinzento das cinzas que a lançar nesta lendária Atlântida de continentes submersos cujos picos vocês habitam.

Ao chegar à Horta pela primeira vez, comecei por essa instituição mundial que é o Peters. O resto vem nos livros. Não bebi o obrigatório gin-tónico mas sentira o peculiar e místico ambiente. “Cheira a Hemingway”, dissera, sem saber ainda que Jacques Brel por lá andara também. As baías deslumbram, dia ou noite, sob a sombra imponente do Pico. Este, ora se esconde, ora se revela num jogo constante do gato e do rato, que entusiasma e arrebata. Aqui há sortilégio. Esta terra marca e adoro-a. Nem demasiado grande, nem pequena, mas cosmopolita quanto baste. Logo no primeiro dia ouvi falar espanhol, italiano, holandês, sueco, finlandês, inglês, francês e português de vários quadrantes. E depois há sempre esta magia do Pico. De olhar para ele pelos olhos de quem está no meio do triângulo. Não é fácil tentar transmitir a atração irreprimível que esta ilha exerce não obstante as mil e uma ameaças de tremores de terra catastróficos e de vulcões semiadormecidos.

Longe vão os momentos de angústia pela ocupação Filipina, pelos ataques dos corsários, e os confrontos das guerras liberais, a que se seguiria a fase de riqueza das laranjas, dos baleeiros e do cabo submarino. Apesar de bombardeada pelos Alemães na 1ª Guerra, a Horta teve um longo período de declínio e enfrenta hoje o desafio de reabilitação urbana do seu rico património. Sem jamais perder a sua rica cultura, espera e deseja um novo Cônsul Dabney que a lidere rumo ao futuro regenerando as suas joias da Coroa. Não pode permanecer estática neste seu escadório frente ao altar do Pico e viver das crónicas de antanho. É por isso que a amo. Termino dizendo que enquanto o Pico me seduz como uma jovem amante irresistível nos seus 750 mil anos, o Faial com mais de 800 mil anos, antes faz as vezes de esposa madura com quem nos habituamos a viver e com quem nos dispomos a passar o resto dos dias num pacto de fidelidade, partilhando alegrias e tristezas, vendo os filhos e filhas crescerem ao longe, ansiando pela visita dos netos enquanto nos deleitamos com as visitas que aqui chegam pelo mar e pintam as suas bandeiras na marina. São esses visitantes que nos trazem novas desse mar imenso que o Genuíno Madruga andou navegando, tal como outrora outros fizeram em busca de novos mundos e gentes. Que seja o mar que nos envolve em suas carícias enquanto a terra nos faz estremecer, a trazer-nos as boas novas de novas glórias e mundos por conquistar.

 

Bem hajam pela vossa paciência para me ouvirem pois vou terminar lendo o único texto em que uso termos típicos das nossas nove ilhas.

 

vejam fotos do lançamento aqui

ChrónicAçores vol 2 Lançamento Maia 1 de julho 2011

Iniciarei o ritual de agradecimentos pelo Jaime Rita por me ter incluído na celebração dos 5 séculos da Maia e desejar que esta cumpra aspirações ancestrais e que em breve seja elevada a vila como já é sentida por muitos.

Uma palavra de apreço à Professora Ana Paula Andrade pela sua amizade e pela sua total disponibilidade para nos presentear com excertos do Cancioneiro Açoriano bem apropriados a este livro. Sinto-me grato pela magistral apresentação do Dr Pedro Bicudo de quem partiu a ideia de se fazer o lançamento nacional desta obra na Maia nas celebrações dos 500 anos, e ao Francisco Madruga da Editora Calendário das Letras, por ter acreditado que valia a pena publicar este livro e por último, já que isto se assemelha a uma apresentação dos Óscares em Hollywood, devo agradecer à minha mulher por ter casado comigo.

Sem ela, estaria na Austrália, nunca teria conhecido os Açores, nunca teria sentido esta açorianidade que através dos Colóquios da Lusofonia temos levado aos quatro cantos do mundo e que é tratada na ChrónicAçores. Por isso, falarei pouco do livro para que o possam ler. Nele, explico como vindo de outras culturas e continentes me deixei apaixonar pela ilha. Os outros mundos, lá fora, perderam importância e servem só para eu divulgar um dos segredos mais bem guardados: o da existência de uma importante literatura de matriz açoriana. Existem muitos autores açorianos que merecem ser lidos. Mas hoje a internet, a televisão, os jogos de consola e outras diversões mais mundanas afastam-nos da leitura como forma de aquisição de saberes. Temos mais informação do que em qualquer outra era, mas estuda-se menos, lê-se menos e subsequentemente sabe-se menos. Nem todos os escritores são complexos como Cristóvão de Aguiar. Uns falam da vida árdua e da fome dos baleeiros do Pico, como Dias de Melo. Outros são poetas como Vasco Pereira da Costa e Eduardo Bettencourt Pinto. Mas poucos serão tão acessíveis como o nosso maiato condecorado, Daniel de Sá que tanto gosta de ensinar História enquanto nos conta as suas estórias. Outros nomes havia mas escolhi os que melhor conheço e a quem chamo amigos. Como tradutor de Daniel de Sá fiquei cativo e apaixonado e tive de escrever este livro para me libertar da poção mágica da sua escrita e daí nasceu “ChrónicAçores: uma circum-navegação”.

Se bem que a minha pátria seja a Austrália eu conjugo-a com a de Fernando Pessoa, a língua portuguesa. Se hoje tenho como mátria Bragança no nordeste de Portugal, aos açorianos o devo, pois foram eles quem me ensinou a ter amor às verdadeiras raízes onde quer que se viva. Ao vê-los tão amantes das suas terras tive de ir descobrir as minhas origens a Bragança embora lá vivesse menos tempo do que em qualquer outro lugar. Sinto como todos transportam esse sentimento de pertença aqui e no estrangeiro.

Quando aqui cheguei desconhecia quase tudo sobre as ilhas, mas descobri no Dicionário do Morais os termos “chamados” açorianos. A língua recuada até às origens e adulterada pelo emigrês que trouxe corruptelas aportuguesadas e anglicismos. Trata-se de desvendar o arquipélago como alegoria recuando à sua infância, sem perder de vista que as ilhas reais já se desfraldaram ao enguiço do presente e não podem ser só perpetuadas nas suas memórias. Nesta geografia idílica não busquei a essência do ser açoriano. Existirá, decerto, em miríade de variações, cada uma vincadamente segregada da outra. Também não cuidei de saber se o homem se adaptou às ilhas ou se estas condicionam a presença humana, para assim evidenciar a sua açorianidade. Limitei-me a observar e a analisar o que me rodeia e depois passo ao papel essas crónicas do mundo que me envolve. Aliás, estou convencido de que uma das razões para haver tantos escritores nos Açores se deve exatamente ao facto de vivermos nestas ilhas. Em São Miguel o verde dos montes, as vacas alpinistas e o mar que nos circunda são responsáveis por nos levarem a escrever.

Num mundo marcadamente materialista como este, decidi que a minha herança para os filhos seria só a riqueza dos conhecimentos que andei colecionando ao longo da vida em circum-navegação e que agora condensei em livro. Aprendi mais nos países onde vivi do que qualquer universidade me poderia ensinar. Com os aborígenes australianos entendi como é possível preservar a língua e cultura mesmo sem haver escrita há 60 mil anos. Com os chineses apreciei o valor do futuro com base nos ensinamentos do passado, e com os timorenses, macaenses e outros aprendi saberes que fazem parte do meu quotidiano. É disso que este livro fala.

A ilha para Natália Correia é Mãe-Ilha, para Cristóvão de Aguiar, Marilha, para Daniel de Sá, Ilha-Mãe, para Vasco Pereira da Costa, Ilha Menina, para mim nem mãe, nem madrasta, nem Marília nem menina, mas Ilha-Filha, que nunca enteada. Para amar sem tocar, ver dilatar nas dores da adolescência que são sempre partos difíceis. Toda a vida fui ilhéu. Perdi sotaques mas não malbaratei as ilhas-filhas. Trago-as comigo a reboque, colar multifacetado de vivências de mundos e culturas distantes. Primeiro em Portugal, ilhota perdida da Europa durante o Estado Novo, depois em um capítulo naufragado da História Trágico-marítima nas ilhas de Timor e de Bali, seguido da ínsula de Macau (fechada da China pelas Portas do Cerco), da imensa ilha-continente Austrália, e na ilhoa esquecida de Bragança no nordeste transmontano, antes de arribar a esta Atlântida Açores.

A ChrónicAçores retrata os meus amores ilhéus. Além da literatura dos Açores, também contém a primeira monografia da Lomba da Maia (onde vivo) antes de viajar de Bragança à Austrália, e aos meus amores por São Miguel, Santa Maria, São Jorge, Faial e Pico.

Aliás a inquietude persegue-me desde que saí de casa em 1972 e – mais propriamente – desde que deixei a Europa em 1973 e me abri ao conhecimento universal e multicultural. Adquiri uma errância mais própria de nómadas ciganos do que das origens sedentárias de marrano galaico-português. Esta inconstância assola-me ainda mais desde que me arquipelizei nos Açores há seis anos. Sou conhecido pela infidelidade no amor às ilha que habito. De cada vez que saio da Ilha verde - e visito ou conheço nova ilha – enamoro-me loucamente como um jovem adolescente de sangue quente em busca de paixões avassaladoras como são os amores da juventude. Só posso viver numa mas em todas quero estar em simultâneo, pois nelas me sinto em casa.

Quero salientar que é uma honra estar aqui nos 500 anos da Maia embora saiba que a minha terra, que a Lomba da Maia ainda não recuperou da tentativa de mudar o nome para N. Sra. do Rosário, ferida pela desfeita real de 1699 quando "...o rei Dom Pedro II, o Pacífico, por certo, não hesitou em desautorizar o bispo D. António, e a Lomba da Maia, sob a jurisdição paroquial da Maia, não chegaria a ser paróquia porque o rei quisera acautelar a integridade dos rendimentos dos párocos da Maia."[1]

Hoje somos vizinhos nesta autonomia democrática e temos de esquecer as rivalidades ancestrais para crescermos em conjunto e não de costas voltadas. Se a Maia está mais voltada para o mar e a Lomba para as vacas, temos de aproveitar essas diferenças para incrementar as nossas potencialidades de atrair turismo para ambas as valências, oferecendo a nossa imensa hospitalidade, gastronomia, os nossos montes e mares pois poderá estar aí o nosso crescimento económico e a solução para o desemprego crescente que já começa a ameaçar a estrutura familiar das nossas gentes. Saibamos aproveitar as semelhanças em vez de realçar as diferenças pois na união está a nossa força. Aqui, na Maia e na Lomba, somos diferentes, somos da costa norte. Não nos importa que a costa sul nos esqueça. Temos enorme orgulho nos nossos mares agrestes, nos nossos ventos mata-vacas e temos a dignidade de cinco séculos de história e de trabalho árduo com a memória da pesca, do linho, do tabaco e das telhas. Esta é a mensagem final que entenderão bem melhor se lerem ChrónicAçores. Bem hajam pela vossa paciência para me ouvirem pois vou terminar lendo o único texto em que uso termos típicos das nossas nove ilhas.

 

1.1. CONVERSAS DO ALÉM

Há tempos ficara menente quando lhe disseram que um falecido, na vizinha Lombinha da Maia, pedira para ser enterrado com o seu inseparável telemóvel. O homem sem pitafe2 algum viera da Amerca3, ali da antiga Calafona4, e queria estar contactável mesmo para lá do grande túnel luminoso.

Qual não foi o espanto, num alpardusco5 de camarça6, ao transitar pelo cemitério já encerrado a visitas, e ver três pessoas do lado de fora das grades do cemitério falando com alguém e usando os seus telemóveis ou celulares bem encostados ao ouvido. Uma delas, tinha uma mão nas grades e na outra segurava o aparelho.

Não tinha tarelo7 nenhum. Não querendo ser lambeta8, interrogava-se “Estaria a falar com o falecido, que nascera empelicado9?” Será que o finado atendeu do lado de lá dentro do seu caixão de mogno envolto na “Stars and Stripes” à prova de leiva10 ou continuaria na sua eterna Madorna11? Teria acendido um palhito12 para ver quem lhe ligava? De que falariam? Que mexericos trocavam? Lamentar-se-iam da falta que lhes fazia ou estariam a queixar-se da carestia de vida? Que palavras trocariam que não tivessem já comunicado? Que faltara dizer? Estariam a queixar-se da sorte caipora13 dos herdeiros ou a culpá-lo pela caltraçada14criada pelo inexistente testamento? Teriam sido vizinhos de ao pé da porta15? Falariam do gado alfeiro16 sem touro de cobrição? Talvez dum derriço duma filha numa constante arredouça17, às fiúzes18 do namorado da cidade? JC ia ficar a nove19 mas tratando-se de gente rural podia augurar que os vaqueiros se preocupassem mais com subsídios e vacas.

Não devem escalar grandes cumes culturais ou espirituais. Pressupunha ser esse o jaez da conversação. Não se crê que pedissem aconselhamento para as eleições legislativas dali a seis semanas nem tampouco lamentassem a falta delas. Quem sabe que lastimavam? Falariam, talvez, de mordomos, impérios e festas que isso, sim, seria assunto da maior relevância local, que o melhor da festa é esperar por ela, mas mais apropriado para se discutir à mesa, sem ninguém a atramoçar20, com uns calzins21de abafado22 até se ficar meio piteiro23.

Uma pessoa interroga-se sobre a possibilidade de duração infinita das baterias do aparelho no esquife. Seria a solução para tantos escritores e outros que se separam dos leitores sem tempo de dizerem um último adeus, escreverem a última frase de um livro, acenarem com um novo projeto ou retificarem qualquer coisinha. Seria a forma inédita de poderem continuar a comunicar com aqueles que ficam facilmente órfãos de autores que os acompanharam nesta digressão terrena.

 Admira-se que as companhias de telecomunicação não tenham inventado uma bateria de longa duração que não precise de ser carregada debaixo de terra e permita acesso ilimitado, a troco de uma conveniente taxa vitalícia, aos que os deixaram já no meio duma amizade, dum amor, duma relação, duma paixão. Seria, decerto, um êxito comercial se viesse com a possibilidade de personalização do aparelho. Quem sabe o que se evitaria de dores incompletas, de saudades por mitigar, de conversas inacabadas? Novos planos poderiam surgir em operadoras de telemóveis. Um tema a merecer estudos futuros…

(texto revisto por e dedicado ao Dr. J. M. Soares de Barcelos, autor de Dicionário dos Falares dos Açores (ed. Almedina 2008), por me fazer sentir menos estrangeiro

  1. 1Menente, espantado, estupefacto (São Miguel)

2  Pitafe, defeito, atribuído quer a pessoas, quer a objetos. Nódoa na reputação.

3  Amerca, corruptela de América, ou Nova Inglaterra por oposição ao outro grande polo de emigração, a Califórnia

4  Calafona, Califórnia, na estropiação dos emigrantes de antigamente

5 Alpardusco, o mesmo que alpardo, crepúsculo, lusco-fusco (São Miguel)

6 Camarça, tempo húmido (São Miguel)

7 Tarelo, juízo, tino (São Miguel)

8 Lambeta, intrometido (São Jorge)

9 Empelicado, diz-se de pessoa afortunada, usado na frase nascer empelicado (Terceira)

10 Leiva, designação dada a formações de musgo de várias espécies Sphagnum, abundante na parte alta das ilhas. No Corvo é o musgo, nas Flores musgão, no Faial tufos. Nome da urze, Calluna vulgaris, usada em S. Miguel na preparação do solo das estufas dos ananases.

11 Madorna, sono leve, sonolência, torpor

  1. 12Palhito, o mesmo que fósforo (Terceira)
  2. 13Caipora, de qualidade inferior, reles. Sorte caipora: que pouca sorte, sorte maldita (São Miguel)
  3. 14Caltraçada, confusão, mixórdia, trapalhada
  4. 15Vizinho do pé da porta, o mesmo que vizinho do portal da porta, que mora nas redondezas de uma casa (vizinho de ao pé da porta em São Miguel)
  5. 16Alfeiro, gado bovino que não dá leite, por exemplo de uma vaca que não apanhou boi, e que, por isso, não dá leite. Gado alfeiro sem touro de cobrição (in Cristóvão de Aguiar)
  6. 17Arredouça, confusão, desordem
  7. 18Fiúzes (São Miguel) ou Às fiúzas de, àcusta de, viver à custa de outrem (Terceira)
  8. 19Ficar a nove, não entender nada do que ouviu.
  9. 20Atramoçar, aborrecer, interferir com, maçar (in Cristóvão de Aguiar) (São Miguel)
  10. 21Calzins, pequeno copo, geralmente destinado a beber aguardente ou bebidas finas
  11. 22Abafado, O vinho abafado é um vinho tradicional dos Açores, constituindo uma tradição na costa norte de São Miguel, onde a abundância de pomares e a produção frutícola excedentária é frequentemente aproveitada para a feitura de licores, vinhos abafados e compotas. No caso dos vinhos abafados, trata-se de um género vinícola com elevado teor alcoólico cuja fermentação é interrompida através da adição de aguardente ou álcool, permanecendo mais ou menos doce (uma vez que o açúcar natural da uva não se transformou em álcool). Transformação licorosa do típico vinho de cheiro micaelense, o abafado é considerado o vinho do Porto dos Açores, em resultado de um processo de laboração que dispensa o recurso a corantes ou conservantes. (São

24 Piteiro, aquele que bebe muito (Terceira, Flores

fotos em images/stories/videos/chronicaçores maia 1 julho 2014.pdf 

 

[1] (in Mário Moura: a criação de uma paróquia")

HELENA CHRYSTÊLLO APRESENTA A ANTOLOGIA BILINGUE 30 SETEMBRO 2011 EM SANTA MARIA NO 16º COLÓQUIO DA LUSOFONIA

 

Queria agradecer em nome das autores à Dra. Graça Castanho e à Direção Regional das Comunidades pelo apoio que permitiu publicar este volume e ao Francisco Madruga editor da obra por ter acreditado que vale a pena divulgar os autores açorianos contemporâneos.

 

Esta obra nasceu duma conversa informal no seio dos Colóquios da Lusofonia na Lagoa em 2009 para se elaborar uma Antologia de Autores Açorianos Contemporâneos com que pretendíamos culminar a falta de conhecimento dos alunos de todos os níveis de ensino sobre a produção literária local.

 

Agradecemos imenso aos autores, dentre os quais Caetano Valadão Serpa, Daniel de Sá e Vasco Pereira da Costa, aqui presentes, pela ajuda que nos deram na obtenção das obras e na seleção dos textos.

 

Os objetivos desta edição mais reduzida da Antologia mas em versão bilingue, português-inglês, é o de proporcionar às comunidades açorianas, lusofalantes e não só, radicadas nos Estados Unidos e no Canadá (e em todo o mundo), o acesso a obras de autores açorianos, muitas das quais esgotadas ou fora de circulação.

 

Uma das grandes dificuldades que enfrentamos foi a de selecionarmos em tão pouco tempo, dentre mais de 1500 títulos, os autores e as obras para este primeiro volume.

 

Tomamos para premissa o conceito de açorianidade formulado por José Martins Garcia que, «por envolver domínios muito mais vastos que o da simples literatura», admite a existência de uma literatura açoriana «enquanto superstrutura emanada dum habitat, duma vivência e duma mundividência».Se hoje, é questão aceite e arrumada para a maioria dos autores será bom não esquecer o polémico debate académico em torno da expressão «literatura açoriana» que ocorreu entre os autores nos anos 80, afetando amizades, afinidades intelectuais e intertextualidades.

 

Em “Constantes da insularidade numa definição de literatura açoriana”, J. Almeida Pavão (1988) declarava, “...sobre a existência de uma Literatura Açoriana...assume-se tal Literatura com o estatuto de uma autonomia, consentânea com uma essencialidade que a diferencia da Literatura Portuguesa Continental.

 

Pedro da Silveira (1922-2003) era perentório:

«…nessa escrita, são visíveis as especificidades que identificam o açoriano como ser moldado por elementos atmosféricos e sociológicos diferentes, adaptado a vivências e comportamentos que, ao longo dos séculos, foi assimilando, pois viver numa ilha implica(va) uma outra noção de mundividência. A literatura açoriana não precisa de que se aduzam argumentos a favor da sua existência. Precisa de sair do gueto que lhe tem sido a sina

 

Por seu turno J. Almeida Pavão escrevia em 1988

“...de Onésimo de Almeida, diríamos que o seu critério, assente na idiossincrasia do homem das Ilhas, nelas nado e criado, nos levanta uma dificuldade: a de englobarmos no mesmo conteúdo da Literatura Açoriana os autores estranhos que porventura as habitaram, já na idade adulta, como o Almeida Firmino de Narcose ou as visitaram, descortinando as suas peculiaridades pelo impacto de estruturas temperamentais forjadas em ambientes diversos”.

Entendemos, pois, que deverão ser abrangidos num rótulo comum de insularidade e açorianidade três extratos diversos de idiossincrasias:

— Um de formação endógena, constituído pelos que nasceram e viveram nas Ilhas, independentemente do facto de se terem ou não terem ausentado;

— O dos insularizados ou «ilhanizados», adotando a designação feliz utilizada por Álamo Oliveira, a propósito do já referido poeta Almeida Firmino;

— E ainda o dos estranhos, como o também já mencionado Raul Brandão.”

 

Por último, Machado Pires discursando sobre esse fenómeno descontínuo porque não há uma evolução ou uma linha histórica progressivamente afirmada, diz haver “Autores açorianos que estando fora dos Açores, deles se ocupam sistematicamente de modo direto e indireto” e sugeriu ”a expressão “literatura de significação açoriana” para uma literatura ligada à peculiaridade açoriana por acharmos demasiado genérica, ambígua e incaraterizante a designação de ‘açoriana.”

 

Há portanto, vários autores, os residentes no arquipélago, os emigrados, os descendentes, e os estrangeiros que escrevem sobre os Açores. Para destrinçar quais incluir na designação açórica optamos por escolher os que aqui nasceram ou viveram e que são unanimemente considerados, pelos seus pares, como “autores açorianos”.

 

 No tocante à estrutura da obra, e com o intuito de agilizar um manuseio eficaz, optámos por ordenar alfabeticamente os Autores (primeiro nome), que são apresentados com uma ‘ficha’ biobibliográfica sumária. Exaustiva não é, decerto, mas é indicadora de quanto se tem produzido literariamente e muito do qual merece ser lido, analisado, criticado e trabalhado.

 

Uma antologia mais não é do que uma amostra de Autores e textos, fragmentária e relativa, mero trampolim para a totalidade almejada em edições futuras. Aos Autores deste primeiro volume, agradecemos profundamente, tanto pela sua anuência à coleção dos textos antologiados como pela colaboração interativa em muitos casos, da respetiva tradução para língua inglesa.

 

Resta-nos aguardar que esta Antologia seja um instrumento de consulta diária não só dos que se dedicam à didática e à literatura mas de todos os que buscam abrir essa janela imensa que é a literatura de matriz açoriana. Enquanto coautora desejo que mais professores  de português e inglês a adotem para enriquecer os conteúdos programáticos e a componente açoriana dos currículos que tanto descuraram até agora as peculiaridades do ser açoriano, português de nacionalidade mas  vincadamente marcado pelas idiossincrasias deste arquipélago que tao isolado andou durante séculos e hoje se afirma possuidor d euma vasta e abrangente obra literária que cuida preservar e  divulgar.

 

Muito obrigado

 

Antologia apresentada Braga.docx

Almedina-Braga, 6 de Dezembro de 2011

Apresentação do livro Antologia Bilingue de Autores Açorianos Contemporâneos

 

 

Onésimo e a questão da Literatura Açoriana

Em vez de oferecer uma visão geral sobre esta Antologia Bilingue de Autores Açorianos Contemporâneos, optei por destacar um autor que nela figura: o Professor Onésimo Teotónio de Almeida. Confesso, desde já, o meu gosto pessoal pela prosa de Onésimo, pela sua limpidez, pelo seu humor (vd. “Que nome é esse, ó Nézimo?”, integralmente nesta antologia). Porém, a minha escolha, hoje, recai sobre um trecho não ficcional que extraí de A questão da literatura açoriana e que também consta da presente antologia:

Embora haja quem suponha estéril o debate sobre a existência ou não de uma literatura açoriana, pessoalmente vejo nele uma riquíssima mina de elementos – dados, ideias perspetivas, conceitos, especulações, interpretações, explicações, análises – que refletem mundividências, posições teóricas sobre estética, pontos de vista sobre uma realidade humana num espaço geográfico específico (os Açores) de muitos dos melhores nomes das letras dos Açores. [...] os textos de intervenção n[esse] debate [...] representam a consciencialização teórica, uma explicitação de pontos de vista, intenções, demarcação e distanciamento de posições da parte exatamente de quem se tem preocupado por conjugar os Açores como tema, ou utilizá-los como espaço ou pano de fundo dentro do qual se move a realidade por eles criada ou recriada nos seus textos.

Com certeza não será este o local, nem esta a hora, de debater a existência ou não da Literatura Açoriana. Questão apriorística, paradoxal, porquanto a sua formulação já expressa a identidade que está a questionar. Da mesma forma, esta antologia também não pretende dar nenhuma resposta a esta questão. Por outro lado, de maneira bem eloquente, a seleção de textos antologiados apresentam-nos as tais conjugações (a que Onésimo se referia) dos Açores como tema, as tais utilizações dos Açores como espaço ou pano de fundo, enfim, a tal realidade de formatação açoriana. Pode, então, o leitor conhecer, ainda que de forma fragmentária, os temas, os motivos, as histórias, as particularidades da língua e os demais recursos retórico-literários que fornecem os argumentos àqueles que defendem a existência de uma Literatura Açoriana. Claro que não se dispensa a leitura integral das obras -- De resto, uma antologia é sempre um convite à procura da obra integral – e só assim se poderá formular uma opinião informada. Pela minha parte, reconheço obras que falam da experiência humana. Sem dúvida, obras que resultam de vivências próprias e estilos pessoais. Mas obras que espelham o mundo, os homens e as mulheres que nele vivem. Utilizando palavras de Claudio Guillén obras “entre o Uno e o Diverso”.

A presente antologia acentua a universalidade das obras antologiadas. Promove-as e facilita que elas cumpram um propósito supranacional, de certa forma, enunciado por Goethe quando anunciava a chegada de uma Weltliteratur: cada literatura local tem um papel a desempenhar na grande sinfonia da Literatura Mundial. E, não abandonando a metáfora, esta antologia desempenha este papel a dois instrumentos: a Língua Portuguesa e a Língua Inglesa.

Diz Onésimo no fim do mesmo artigo que “quem lucrará com isso [o reconhecimento da Literatura Açoriana] será a Literatura Portuguesa. Ficará menos monocórdica. E monótona.”. Depois desta antologia bilingue, independentemente de reconhecermos ou não a existência de uma Literatura Açoriana, quem lucra é a Literatura do Mundo: fica ainda mais polifónica e acessível a um maior número de leitores.

João Peixe
Doutorando da Fundação para a Ciência e Tecnologia
Centro de Estudos Humanísticos
Instituto de Letras e Ciências Humanas
Universidade do Minho

Prefácio

Que direi deste (belo) livro?

Chrys Chrystello é um sonhador. E tanto sonha com a estátua de um cavaleiro e seu cavalo na ilha do Corvo como tem pesadelos com uma procissão de penitência em 1713, entre mortos e escombros, ou com a ilha a dividir-se em duas, como há milhares de anos o ilhéu das Cabras junto à costa da Terceira. E chama-me céptico, porque só acreditarei na estátua quando, um dia, vir com os meus próprios olhos a ilha do Bom Jesus, que Gaspar Frutuoso diz que fica a cento e vinte e duas léguas e meia de S. Miguel, tendo dezoito de comprimento. Da estátua consta que ainda lá está, cada vez menos parecida com um cavalo e um cavaleiro, que provavelmente nunca foi, e dos escombros de 1713 só os houve para as bandas dos Ginetes, Mosteiros e Candelária, sem se terem chorado nenhuns mortos, a não ser os que pelas leis naturais da vida se iam dos tremores libertando. A ilha, esta, por enquanto não se partiu, e pouco até hoje se repartiu. Nada habituado ainda aos tremores dela, até os tremeliques dos alicerces do seu castelo, quando passa um camião carregado e acelerado, lhe parecem o anúncio de outro 1755. É que os sismos podem avaliar-se pela escala de Mercalli, de Richter ou de S. Jorge. Acerca desta contava Augusto Gomes, escritor de histórias deliciosas e de receitas de culinária saborosíssimas, um caso acontecido naquela ilha, durante a crise sísmica de que o Chrys também fala neste livro, uma dessas que de vez em quando vêm por aqui exibir-se em sessões contínuas. Encontravam-se por lá uns quantos cientistas para acompanharem o fenómeno, e aconteceu que, estando eles numa praça em cavaqueira com habitantes locais, a terra deu uns solavancos e, quando acalmou, um dos nativos disse: “Este foi de grau cinco.” Foram os sábios verificar nos sismógrafos, e constataram a confirmação. Grau cinco. A cena repetiu-se e, mais grau menos grau, terá sido assim. Um tempinho depois, outro ataque de nervos daquela boa terra, e o mesmo senhor a garantir que esse fora de grau quatro. E fora. A terra tomou fôlego para mais uns arrepios, ou deixou que os homens o tomassem, e lá veio com uns movimentos tão imperceptíveis que era preciso estar muito atento para poder percebê-los. “Este foi de grau três”, assegurou o sismógrafo humano. E foi. Intrigado, um dos cientistas presentes perguntou-lhe como é que ele conseguia acertar sempre. Embora mais ou menos óbvia, a resposta não deixou de causar risos e espanto: “Ó meu rico senhor, isto é conforme o cagaço”.

Pois bem, o Chrys Chrystello usa é esta escala, mas exagera.

Mas disto e de Atlântidas perdidas e moedas fenícias achadas nada mais direi, para que o Chrys não tenha de contrapor ao prefácio um posfácio que o negue. Até porque ele me fez personagem destas crónicas, e uma personagem deve entrar muda e sair calada. Pelo meio, o autor dá-lhe a palavra quando quer e para dizer o que quer, muitas vezes porque não se arrisca a dizer verde quando o verde é verde, por mais que o queira verde. E, tendo eu feito ecoar assim de surpresa a memória de Lorca, até para surpresa minha que isto do pensamento nem sempre a gente pensa o que quer, a este respeito me calo, passando a ocupar o meu lugar na esquerda alta do palco para anunciar o espectáculo. Antes que o meu amigo me faça o mesmo que Unamuno fazia às suas personagens quando deixava de precisar delas.

Será então que Chrys Chrystello mente? Por Deus, nem por sombras pretendi insinuar tal. Que seria da literatura se chamássemos mentira a todas as Joaninhas de olhos verdes, aos Magriços cavaleiros de salvar honras ofendidas ou até aos Malhadinhas almocreves, mais humildes a montar e desmontar? Perdia-se o melhor dela, da literatura, que a respeito de verdades muito certinhas estimamo-las tão pouco que são muitos mais os que lêem livros de viagens, ainda que chamem Mentes Minto ao honesto autor, do que os que procuram saber dos lugares e dos povos, contados por quem tenha nascido e sempre vivido na terra de que fala. Porque, nisto de acreditar no que conta o viajante apressado, penso sempre no que uns marinheiros, não sei de que nação, ainda hoje talvez digam aos amigos do modo como se enterra um defunto aqui na Maia. É que eles passaram em frente da igreja no momento em que a banda de música iniciava uma peça marcial, porque já vinham saindo as coroas e bandeiras do Espírito Santo enquanto os foguetes iam fazendo o seu papel de inquietar ares, aves e outros animais, incluindo alguns humanos. E, logo atrás das bandeiras, um caixão com seu morto, cujo corpo também assistira à missa.

Ah, só mais um exemplo, por favor. É que isto de prefaciar um livro de crónicas não é o mesmo que escrever a introdução de um romance ou de um ensaio. Do romance, quando o prefaciador tenha pouca imaginação ou escassa vontade de puxar por ela, pode sempre recorrer ao irritante processo de o resumir. “Manuel conheceu Ana numa manhã de nevoeiro, casaram-se numa tarde de sol, e foram felizes para sempre.” Então para que teve o romancista de escrever quatrocentas e vinte páginas para contar isto? E para que vai agora um filho de Deus ler o romance se já sabe que eles foram felizes para sempre?

Se for um ensaio ou um livro de crónicas, há uma tirada cultíssima que raramente falha. Refere-se a condição humana, e escreve-se o resto à volta do tema. Fora eu comodista, e, dizendo isto mesmo desta circum-navegação do Chrys, sem mentir estaria o principal explicado. Porque facilmente se percebe que quem andou à volta do Mundo não pode escapar de ver e de sentir as contradições da condição humana. Óbvio, não será? Mas o que se espera de quem nestas circunstâncias está no uso da palavra é que nos poupe ao óbvio. E, no meu caso, que venha com o tal outro exemplo anunciado. Que serve como prova circunstancial de que não basta ver um cortejo do Espírito Santo, que por acaso coincidiu com um funeral, para fazer ideia de como se enterra um cristão numa ilha dos Açores.

Pois foi o caso que, se eu tivesse visto apenas um certo grupo de nipónicos na Ilha de Toronto, no lago Ontário, teria ficado com uma ideia muito errada de como se comportam os filhos do Sol Nascente perante desconhecidos. Estavam esses japoneses, que é o que os da Terceira chamam aos de S. Miguel, mas aqueles eram japoneses dos verdadeiros, preparados para uma fotografia. Eu fiz o que é mais ou menos normal em situações semelhantes: ofereci-me para tirar o retrato, para que o fotógrafo de serviço pudesse ficar com os outros dezanove ou trinta, que nem sei quantos seriam. De súbito, o homem começou a vociferar, deu pinotes saltando com os dois pés ao mesmo tempo, disse não sei o quê lá na língua dele, suponho, que me deixou estupefacto mais o grupo com quem eu ia. Uns cem metros mais adiante, uma cena rigorosamente igual. Os mesmos fatos pretos, as mesmas caras, o mesmo fotógrafo, as mesmas alturas. Como num pelotão de infantaria. Saí cuidadosamente da estradazinha para passar por detrás do fotógrafo, que eu só sabia que era outro e outro o grupo porque os primeiros continuavam à razoável distância de um hectómetro, mais japonês menos japonês. O da máquina veio ter comigo, fez aqueles salamaleques que a gente pensa que só são de ver em filmes, e deu-me a entender, na língua universal dos gestos, que me pedia para substituí-lo na função. Acedi, claro, ele foi juntar mais um sorriso aos outros dezanove ou trinta, e eu ainda hoje peço a Deus que já me tivesse passado a estupefacção e que os vinte ou trinta e um tenham ficado todos bem no retrato.

A moral da história é a seguinte. Se eu não tivesse dado com aquela duplicação do primeiro grupo uns cem metros mais adiante, que ideia faria dos japoneses?...

Segunda lição da história. Chrys Chrystello não fala nunca de coisas, lugares e pessoas que só viu uma vez na vida. Ele esteve lá, ele está cá, ele é de Trás-os-Montes e da Austrália, de Timor e de Macau, de cada pedaço ou pedacinho de terra e de gente que aqui irá aparecendo num retrato fielmente feito de palavras, mas com a alma do autor por dentro.

A crónica é uma espécie de literatura total. O mais completo e complexo género literário. Nele cabe a reportagem, a crítica, a autobiografia, a ficção. Enfim, tudo o que se lhe queira meter dentro. O sabor do caldo que daqui resulta depende da sensibilidade do autor. Do dedo, como se diria em culinária. E Chrys Chrystello tem um dedo muito experimentado e muito experiente. O que não é a mesma coisa, pois não falta quem tenha muitas experiências e nenhuma experiência. Como diria Camões, um saber de experiência feito.

Chrys, que é um dos raros exemplares de luso-australianos que existem no Mundo, afirma-se mais austral do que boreal. Isso é o que ele pensa… O seu sentido crítico, por vezes apocalíptico, cabe muito bem na linha queirosiana ou ramalhal. A sua aversão pela Inglaterra – o que é sempre uma virtude apreciável – é tipicamente portuguesa, pelo menos dos portugueses que sabem o que se tem passado depois do tratado que D. Vasco Domingues assinou em Tagilde em nome de D. Fernando, e que precedeu o de Windsor. (Como D. Vasco Domingues era o chantre de Braga, não admira que, de então para cá, os ingleses só nos tenham dado música. Da má.) O seu descontentamento constante, a respeito do que se passa com este povo para a beira-mar empurrado, é a assinatura digital (de dedo, lembram-se de quando “digital” só queria dizer isto?) que o identifica mais connosco do que com os australianos que estão convencidos de que a Austrália é o melhor país do Mundo. (Seria, se não ficasse tão longe.) Além disso, tem aquela maneira de ser que faz lembrar Thomas Paine, o tal que disse “my country is the World”, e andou pela América a desinquietar os outros ingleses todos, até à independência sob “stars and stripes”. Mas até nisso é um português típico, um português histórico, daqueles capazes de calcorrearem o mundo inteiro e de sonharem novas pátrias. Ou não tivesse sido ele um dos jornalistas que mais se destacaram em defesa dos direitos de Timor, ou da parte de Timor que fica do lado onde o Sol nasce.

Chrys viu o desabar dos restos do Império nos confins da Terra. Embora aí o Império fosse mais de mapa que de realidade feito. Timor foi praticamente apenas um lugar de comércio falado também em português, e Macau um empréstimo a prazo “sine die”.

Mas o Chrys tem outra qualidade que o torna tão português quanto eu: fala e escreve nesta língua como se ela fosse mesmo a sua pátria. (Cá está a fatalidade. Quando a gente faz mais de três citações, duas pelo menos são de Camões e de Pessoa…) E nisto, meus caros, não há que pôr defeito. Nem na língua nem no modo como ele a usa. Porque esta língua tem a vantagem de ser una e única no país inteiro. (Apesar de haver uma lei que declarou oficial uns resquícios de linguagem raiana, uma curiosidade histórica do seu Alto Douro ancestral.) E disto poucos países se podem orgulhar. Fala-se e escreve-se da mesma maneira. Não é como o chinês, em que, por exemplo, o símbolo que representa a palavra chá se lê assim em mandarim e “té” em cantonês. De tal maneira que uns senhores do Império do Meio, que estiveram em Ponta Delgada na abertura de uma exposição de arte antiga chinesa, não se entendiam. Era gente de embaixador para baixo, mas não muito mais abaixo. Tagarelavam, e via-se bem que aquilo que uns diziam era chinês para os outros. Então o esforçado comunicador pegava numa folhinha de papel (para isso o inventaram eles há dezanove séculos), desenhava alguns daqueles muitos milhares de sinais que só eles entendem, mostrava à sino-audiência, e os outros desfaziam-se em reverências de assentimento.

A nossa vantagem é que qualquer português que saiba ler entende o que o que o Chrys escreveu nestas crónicas. E de certeza que vai gostar. E eu prometo voltar a lê-las em papel, porque, apesar de muito ter valido a pena, isto do ecrã de um computador não tem o mesmo gosto. Falta-lhe o cheiro. Que é a única sensação que o Chrys não conseguiu transmitir desta sua viagem de circum-navegação.

 

                   Daniel de Sá

 

 

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